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REFLEXÕES SOBRE A FAMÍLIA EVANGÉLICA BRASILEIRA

Tradição, Contradição e Expressões de Amor

O modelo de família que conheci na infância é aquele que hoje chamamos de “família tradicional”. Apesar de, na época, não perceber que esse modelo tinha raízes sociais, culturais e religiosas, ele sempre me causou um desconforto. Desde cedo, entendi que a família era o lugar onde nos tornamos humanos, um espaço de crescimento, de ensaio para as possibilidades de convivência. No entanto, percebia que algo estava fora do lugar. As famílias que observava, especialmente as evangélicas, viviam uma espécie de contradição. Embora os adultos enchessem o peito pra afirmar que  “família é a base de tudo”, na prática, minhas amigas adolescentes não se sentiam tão enraizadas e felizes assim, pelo contrário, detestavam estar na mesma família na qual os pais se orgulhavam em ter, permeada por conflitos não resolvidos, panos quentes, cobranças e aparências.

No contexto brasileiro, marcado pela forte influência do cristianismo de matriz europeia, esse modelo familiar se consolidou ao longo do tempo. Com o crescimento do número de evangélicos no Brasil que segundo dados recentes, deve ser a maioria até 2032, a influência desse segmento religioso na construção das relações familiares e na parentalidade torna-se inevitável. Este ensaio busca refletir sobre as bases, origens e contradições desses modelos, o significado de amor dentro da família evangélica e suas consequências no desenvolvimento emocional de crianças e adolescentes. Propõe ainda alternativas mais autênticas e amorosas de relacionamento familiar.

A “família tradicional” é historicamente aquela formada por pai e mãe, um ou mais filhos. Não qualquer pai ou mãe. Essa configuração privilegia o casamento heterossexual, um núcleo familiar composto pela figura do pai provedor e da mãe cuidadora. Foi moldada ao longo da história, influenciada, entre outros fatores, pelas doutrinas religiosas, incluindo o cristianismo de matriz europeia.  Vera Iaconelli, em seu Manifesto Antimaternalista, argumenta que essa família ideal, “padrão ouro”, está intrinsecamente ligada a estruturas patriarcais e capitalistas e se mantém numa dimensão hierárquica e resistente à diversidade e às mudanças sociais. Ana Géssica Silva e Rosângela Bujokas de Siqueira, descrevem a família tradicional conservadora pela promoção de papéis fixos: homem provedor e líder, enquanto a mulher assume o cuidado e a colaboração/submissão. No ambiente evangélico, a narrativa eclesiástica frequentemente reforça a ideia de família como uma “instituição sagrada” que deve ser preservada a qualquer custo, mesmo que isso signifique esconder conflitos ou perpetuar desigualdades e opressões. Esse modelo familiar associa a figura do patriarca à autoridade divina, coloca a mulher no papel de mãe e colaboradora, muitas vezes subalterna, ainda que palavras que evoquem a inferiorização da mulher sejam atenta e estrategicamente evitadas. Assim, o modelo tradicional “padrão ouro” atua como um instrumento de manutenção de hierarquias sociais, raciais e de gênero, que se traduzem em relações de poder internalizadas dentro do próprio núcleo familiar. Ou seja, a família tradicional evangélica sofre, ainda que não se dê conta, os impactos da dominação masculina sobre mulheres e crianças.

O discurso conservador também sustenta essa manutenção defendendo a tradição e resistindo a mudanças culturais. Para essa vertente, a sociedade deve seguir códigos morais e estruturas sociais enraizadas na moralidade bíblica e na lógica patriarcal. Qualquer configuração familiar que fuja ao padrão de pai, mãe e filhos — como famílias homoafetivas, monoparentais ou multifamiliares — é vista como disfuncional, desajustada ou problemática, como se o fator preponderante para o sucesso de um indivíduo dependesse de seguir esse modelo e não dos vínculos tecidos intencionalmente entre os adultos responsáveis através do respeito, do diálogo, da confiança, da segurança e da autoridade parental.

Todo mundo acredita que saberá instintivamente como amar, mas a realidade é que todos queremos ser amados, mas não sabemos como. bell hooks, escritora norte americana, aponta em sua obra que “embora vivamos numa nação cuja grande maioria dos cidadãos se declara seguidora de credos religiosos que proclamam o poder transformador do amor, muitas pessoas sentem que não fazem a menor ideia de como amar. E praticamente todos sofrem uma crise de fé quando se trata de vivenciar no cotidiano as teorias bíblicas sobre a arte de amar.” Ficamos apegados à ideia romântica de que na família encontraremos o amor verdadeiro. No entanto, os dados denunciam que a família é o principal lugar de abusos contra mulheres e crianças, onde muitos se sentem desamparados, diminuídos e desconsiderados. Além disso, é importante perceber que essa configuração familiar não é neutra. Ela funciona também como um projeto do próprio sistema capitalista, que reforça hierarquias, possessividade e controle. Toda tentativa de controle é uma barreira para o amor.  hooks apontou que,  na perspectiva tradicional, o amor muitas vezes se reduz a uma lógica de posse, dever e obrigação, como se a consanguinidade garantisse o vínculo afetivo, negligenciando a necessidade de se construir relações baseadas em respeito, cuidado genuíno e liberdade.

A parentalidade evangélica, frequentemente, se fundamenta em contradições. Embora muitas igrejas preguem o desenvolvimento de indivíduos autônomos e moralmente responsáveis, defendem um modelo único de família e de comportamento, insistindo em papéis de gênero rígidos, obediência cega à autoridade e manutenção da ordem estabelecida. Essa padronização moral ignora que a real autonomia requer liberdade para pensar, experimentar e até mesmo discordar. Como exercer uma parentalidade baseada no respeito mútuo, se respeito exige enxergar o outro em sua inteireza, com singularidades, limites e desejos? Em relações saudáveis, há espaço para conflitos, para erros e reconstruções. No entanto, ao se apegarem a um ideal de família-perfeita-num-domingo-ensolarado, muitas famílias evangélicas não percebem que, ao negarem as complexidades da vida, caem no autoengano. É justamente nesse lugar, onde a aparência de família feliz importa mais do que o afeto e atenção genuínos, que surgem histórias de infidelidade conjugal (inclusive de líderes religiosos), de mulheres silenciadas e adoecidas e filhos emocionalmente distantes. A tradição religiosa insiste em associar autoridade à hierarquia, como se obediência cega fosse um ato de fé. Mas a verdadeira autoridade se constrói na escuta, na presença e na coerência entre discurso e prática. A autoridade que inspira é aquela que se dispõe a aprender junto, que reconhece seus erros e não teme a dúvida. Uma fé madura não é aquela que se protege da dor, mas cresce com ela. A parentalidade nesse contexto de discipulado, deveria ser entendida como uma prática espiritual cotidiana, e não como um exercício de controle. Quando os filhos chegam, não vêm confirmar nossas certezas, mas nos convidam à humildade, a olhar nossas dores veladas e à transformação. É justamente nas tensões, nas falhas e nos atritos que temos a chance de construir um amor real, sustentado na segurança emocional, no vínculo e na confiança de que é possível ser quem se é na família, sem medo de ser rejeitado.

Ao contrário do que somos levados a acreditar, cuidado e amor não são sinônimos, nem surgem naturalmente apenas porque alguém se autodenomina família. Alimentar, vestir, ditar regras, tudo isso pode ser feito sem que haja amor verdadeiro. bell hooks lembra que o cuidado é apenas um dos aspectos do amor e pode coexistir com práticas autoritárias, opressivas e silenciosas. É possível, infelizmente, ser cuidado e ao mesmo tempo não ser respeitado ou visto como sujeito de direito. A insistência de muitos líderes religiosos em preservar o modelo tradicional como sagrado frequentemente ignora as consequências emocionais e psíquicas que esse modelo impõe. Ao minimizar a importância de vínculos afetivos construídos com base no respeito e na liberdade, muitas igrejas acabam perpetuando um padrão que gera dor, culpa, repressão e medo. Onde está o amor cristão que prega a transformação, a justiça e a inconformidade com os ideais mundanos, enquanto crianças e adolescentes crescem com medo de seus pais, mulheres se calam por vergonha ou submissão, e o conflito é tratado como pecado em vez de uma oportunidade de crescimento? “Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor” (1 João 4:8). Esse verso não deveria ser o critério de toda prática cristã? Se o amor é o maior mandamento, não faz sentido que tantas práticas ditas cristãs produzam medo, vergonha e exclusão. É preciso resgatar o sentido radical do Evangelho como notícia libertadora que rompe com as lógicas de dominação e abre espaço para o cuidado genuíno, a escuta verdadeira e o reconhecimento da dignidade de cada pessoa.

Há inúmeros relatos de pessoas que cresceram em famílias evangélicas sentindo-se inadequadas, insuficientes e eternamente em dívida. Ao ignorar essas vozes, a igreja reforça o ciclo de sofrimento. A chegada dos filhos nas nossas vidas, vêm confrontar nossas certezas e isso não quer dizer abalar a fé, pelo contrário. Como afirma Jacques Ellul, “A fé pressupõe a dúvida, a crença exclui a dúvida.” A parentalidade, vista como uma missão espiritual, é uma oportunidade de praticar a fé e exercitar o amor. Amar exige assumir risco, ter abertura, escuta e disposição para a transformação. A família deve ser um espaço seguro onde há confiança para ser vulnerável e discordar sem medo, onde os vínculos são mais importantes que os papéis. Ao defender a família tradicional como valor absoluto e combater questionamentos como ameaça, a igreja se contradiz. A fé cristã convoca à transformação, não à estagnação. O amor precisa ser mais do que discurso; precisa ser prática diária, política, afetiva e espiritual. Como disse o apóstolo Paulo em uma de suas cartas: “Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três; mas o maior destes é o amor” (1 Coríntios 13:13). Que esse Amor, vivo, reconciliador e libertador, seja o alicerce de múltiplas formas de viver em família.

ROBERTA JARDIM


Eixo | Questões da Contemporaneidade

Marcador social | Religioso

Maio/2025

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

  • Iaconelli, Vera. Manifesto Antimaternalista. 1ª ed., São Paulo:Zahar, 2024
  • hooks, bell. Tudo sobre o Amor: novas perspectivas. 1ª ed.,São Paulo:Elefante,2021
  • Podcast “É tudo culpa da cultura”: Ep.Escolhi Esperar

https://open.spotify.com/episode/3X8XsIfgjzb0gggrlM7PpL?si=2142be60b9e2463e acesso em 14/03/2025

https://open.spotify.com/episode/184hh1wav5pkQ4R66JeUkv?si=frQ5bHgJTW-cX15DkdqMSw acesso em 28/03/2025

https://www.fronteiras.com/leia/exibir/a-familia-tradicional-e-realmente-o-que-queremos acesso em 09/05/2025

https://www.politize.com.br/conservadorismo-pensamento-conservador acesso em 12/05/2025

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