Eu, assim como a grande maioria dos meninos da minha geração, cresci num ambiente naturalmente machista, e não apenas por parte de nossos pais, mas também por parte de nossas mães, nossos avós, tios, cuidadores, escola, professores e de toda sociedade à nossa volta.
Fomos ensinados desde sempre a esconder nossas emoções (como se elas fossem a brecha de uma armadura pela qual as pessoas poderiam nos ferir ou mesmo se aproveitar de nós), fomos doutrinados a engolir nosso choro, porque de certa forma a expressão das nossas lágrimas nos tornava menos homens. Aprendemos desde cedo a esconder fraquezas e, caso não pudéssemos, que encontrássemos alguém mais fraco para que fosse o alvo ao invés de nós. Jamais fomos ensinados a cuidar, nem de nós mesmos e nem de outrem. Medo, o que seria isso? Para nós o medo não deveria existir, pois era apenas mais uma demonstração de fraqueza, de fragilidade. Aprendíamos sobre sexo sozinhos, na maioria das vezes através de filmes pouco didáticos e reais, revistas e outros conteúdos disponíveis na época que em nada ensinavam de verdade. Havia ainda uma das maiores violências com os meninos, quando o pai, padrasto ou cuidador mais próximo resolvia pagar pela primeira vez, como a que garantir que o filho fosse “homem de verdade”. Poucos eram os privilegiados que tinham realmente uma conversa sadia com seus pais sobre esse assunto.
Nas minhas memórias, lembro muito claramente de um episódio de quando tinha cerca de seis anos de idade, nós tínhamos feito uma guerra medieval na escola e eu, por ter um escudo, fui apedrejado sem dó para ter que usá-lo e no processo, acabei correndo para me safar, caí e arranhei todo o meu joelho. A informação que chegou em casa foi a de que eu havia brigado e apanhado, e eu ouvi a seguinte frase do meu pai: “Se você apanhar na escola e não revidar, você vai apanhar novamente em casa quando chegar!” Embora hoje eu possa dizer que meu pai jamais bateu em mim (e nem precisava), aquela frase me apavorou de uma forma que jamais saberei explicar. Considerando que eu nunca fui um moleque ágil ou bom de briga, só me restavam duas opções naturais na minha mente: fugir ou, caso fosse pego, esconder que havia brigado.
O que ninguém sabia na época era como essa educação dos meninos refletiria na fase adulta, em o quanto nós somos hoje é fruto da nossa infância e de como eram nossas relações de afeto.
Existe uma pesquisa do Instituto Papo de Homem intitulada “O Silêncio dos Homens” (que também é um documentário, ambos de 2019) que demonstra alguns reflexos dessa infância dos meninos atualmente. Vamos ver algumas dessas dores que os homens enfrentam hoje:
- 83% das mortes por homicídios e acidentes no Brasil tem homens como vítimas – isso significa mais de 110.000 mortes por ano (Ministério da Saúde, 2010)
- Vivem 7 anos a menos que as mulheres e se suicidam quase 4 vezes mais (IBGE)
- Quando sofrem um abuso sexual, demoram em média 20 anos até contarem isso pra alguém (Associação Quebrar o Silêncio)
- 1 em cada 4 homens afirma estar viciado em pornografia (dados provenientes do estudo do Instituto Papo de Homem)
- Na faixa de 20 a 24 anos, as mortes por causas extremas (homicídios, suicídios, acidentes de trânsito e etc.) atingiram 11 vezes mais homens do que mulheres – em especial os homens negros
- Sofrem duas vezes mais acidentes no trabalho; além do menor autocuidado, ocupam muito mais os trabalhos mais perigosos e sujeitos a mortes, acidentes graves e amputações (Ministério do Trabalho)
- Homens são cerca de 95% da população prisional no país, sendo que a maior parte dos encarcerados são jovens, negros e periféricos (Instituto Igarapé)
- O desempenho escolar dos meninos vem caindo, assim como a quantidade de homens que entram nas universidades e concluem os cursos de graduação. Hoje, entre a população brasileira com acesso à Internet, 29% das mulheres têm superior completo x 25% dos homens — no Norte e Nordeste, a diferença é maior ainda: 24% delas e 18% deles (PNAD 2017)
Recortes de raça, classe e orientação sexual atravessam e influenciam todos esses índices, em diferentes medidas. Fazendo com que homens negros, pobres ou LGBTs sintam mais de boa parte disso.
O dr. Gabor Maté, no seu documentário “The Wisdom of Trauma” diz que 64% dos homens e mulheres presos tiveram seis ou mais experiências adversas na infância.
“As crianças não se traumatizam porque se machucam. As crianças se traumatizam porque ficam sozinhas nas suas feridas.” Gabor Maté
No documentário “The mask you live in”, Joe Ehrmann traz que associamos sempre masculinidade à capacidade atlética e com essa ideia pais e filhos se deparam com inúmeros fracassos e decepções. Tem um trecho que me toca sempre que é quando Joe diz o seguinte: “Eu peço a todos os homens para lembrar que idade tinham e qual era o contexto quando ouviram alguém mandando que fossem homens. Eu acho que essa é uma das frases mais destrutivas da nossa cultura.”
No mesmo documentário, o Dr. Michael Kimmel diz que a masculinidade construída na infância se torna a rejeição a tudo o que é feminino.
Tony Porter fala sobre gênero ser também uma construção social. Muitas vezes damos aos meninos o que eles precisam para que não sejam alvos de piadas, humilhações ou demais tipos de violência, não agimos contra o que está estabelecido. Simplesmente seguimos o fluxo como forma de preservá-los.
Com isso, o medo de se isolar, de não pertencer, de trair um “irmão” é o que faz na grande maioria das vezes homens não agirem como deveriam, por mais que seu coração ou sua bússola moral diga o contrário.
Muitas vezes a escolha é baseada em nossos privilégios. Muitas vezes só precisamos ouvir que somos bons o bastante, abandonar o modelo prototípico de homem.
Isso é só uma pequena parte da infinidade de dados e informações que temos à disposição hoje e que nos dão um mapa de qual caminho precisamos seguir se desejamos de verdade um futuro diferente.
Devemos aos nossos filhos a tentativa de derrubar os sistemas de repressão emocional que levam tantos homens a viver vidas de desespero silencioso, depressão, álcool, abuso de drogas e todas as outras formas que homens se automedicam.
Precisamos desafiar homens e meninos a demonstrarem as melhores partes do seu caráter, a serem as melhores versões de si mesmos, como homens e seres humanos. E esse desafio começa em nós, não com o olhar de culpa para nossos pais ou ara sociedade, mas sim em como daqui para a frente podemos fazer diferente.
“Sem os homens nós não vamos avançar tanto. Os homens precisam ser – e muitos deles querem ser – aliados nesse processo.” Sandra Vale, consultora de gestão e desenvolvimento no Instituto Promundo
Emerson Pereira Mendes
Eixo: Infâncias
Marcador: Gênero
Referências Bibliográficas:
THE Mask you live in
Direção: Jennifer Siebel Newson
Produção: Jennifer Siebel Newson, Jessica Congdon, Jessica Anthony
Local: Netflix, 2015
THE Wisdom of trauma
Direção: Zaya Benazzo e Maurizio Benazzo
Produção: Zaya Benazzo e Maurizio Benazzo
O Silêncio dos homens
Direção: Ian Leite e Luiza de Castro
Produção: Site Papo de Homem
Local: Assistam nosso documentário “O silêncio dos homens”, na íntegra – PapodeHomem