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E QUAL O LUGAR DO AUTO CUIDADO?

O tema do autocuidado sempre me atravessou – mesmo antes que eu soubesse que isso tinha nome. Minhas primeiras percepções sobre autocuidado foram mediadas pela minha mãe: ela observava, por exemplo, que nos churrascos de domingo, após o almoço os homens (meu pai, meus tios, primos etc.) sempre iam dar uma deitadinha ou faziam alguma atividade de lazer, algo para si mesmos, enquanto as mulheres ficavam tirando a mesa, lavando a louça e providenciando sobremesa, café etc. E ela apontava isso com muito ressentimento, confidenciando para mim suas queixas. Ela também observava que, durante as refeições quando recebíamos visitas, meu pai ficava calado, ficando para ela a tarefa de puxar assunto e entreter as pessoas (mesmo quando eram visitas convidadas por ele). Também me lembro dela contando muitas vezes que meu pai saía frequentemente para seus compromissos de lazer (vôlei, saída com amigos para beber etc.), mantendo a agenda que tinha antes de se casar e ter filhos, e ela ficava com as crianças em casa; e nas poucas vezes em que ela se permitiu sair para fazer algo só para ela, meu pai não ficou cuidando de nós em casa, e sim fez disso um grande programa, juntando-se com outros homens para se divertir e deixar as crianças brincando. Cresci ouvindo essas queixas e fui internalizando algumas crenças a partir delas: homens fazem o que querem, mulheres fazem o que “devem”.

Quando criança, eu tomava partido de minha mãe e reproduzia essa leitura de mundo. Mas, à medida que fui me tornando adolescente, comecei a entrar em conflito com essa visão; afinal, ouvia à minha volta pessoas (em sua maioria homens) taxando mulheres como minha mãe de reclamonas, de castradoras, e eu não queria me associar a essas imagens tão negativas. Eu queria ser e parecer legal, livre e despreocupada como um homem. Comecei a comprar o discurso de “ué, se ela quer dormir depois do almoço, por que não dorme? Se ela quer companhia para cuidar das crianças, por que não marca com as amigas? Pra que ficar só reclamando?” Eu sabia que minha mãe tinha razão e conseguia ver as mesmas coisas “invisíveis” que ela enxergava, mas para a Juliana de 13, 14, 15, 16… anos passou a ser muito custoso estar desse lado da corda, ainda mais que não parecia haver qualquer possibilidade de mudança: era só uma raiva reprimida, transformada em eterno ressentimento. Passou a ser muito mais interessante, para minha sobrevivência como adolescente nesse mundo, mudar de lado e me enxergar como uma mulher descolada. Mal sabia eu quais eram essas forças que me faziam valorizar tanto a aprovação masculina em detrimento de minha percepção de uma profunda desigualdade entre os gêneros, e simplesmente varri essa percepção para debaixo do tapete.

Essa estratégia até deu certo, até que, com 31 anos, tornei-me mãe, e aí tudo aquilo que estava debaixo do tapete me esmagou como uma avalanche. Eu me sentia praticamente uma escrava, enquanto meu então companheiro mantinha sua vida como antes, e ainda me sobrecarregava deixando a logística de tudo para mim e, o pior de tudo, queixando-se de que eu reclamava demais e que estava ficando insuportável viver com uma pessoa tão ansiosa, preocupada e controladora como eu. A pior sensação de todas era essa culpa que eu sentia por achar que, se eu estava insatisfeita, o problema era eu, e não qualquer outro fator (como o patriarcado, por exemplo).

Na época, quem me salvou foram mulheres que estavam publicando sobre questões sociais ligadas à maternidade em blogs, sites, grupos de facebook. Entrei em contato com a Cientista que Virou Mãe (Ligia Moreiras Sena) e outras mulheres incríveis que pareciam relatar exatamente o que eu vivia, e foi um alívio saber que aquilo tudo não era um problema só meu, que fazia parte de algo maior. Quando conheci o termo “carga mental” (a partir dos quadrinhos de Emma – Geledés, 2017), então, um portal de compreensão se abriu dentro de mim: finalmente tinha nome aquela percepção que minha mãe tinha me apresentado desde que eu era criança! Aquilo não era loucura da cabeça dela, aquilo existia de verdade!

A carga mental não só existe como é um problema basilar em nossa sociedade. Segundo o Marco Conceitual da Política Nacional de Cuidados do Brasil, elaborado no final de 2023, a organização social dos cuidados no país “é desigual, injusta e insustentável […]. As mulheres continuam sendo as principais – quando não exclusivas – responsáveis pelo trabalho de cuidados”. Na matéria Quem são as mães brasileiras?, produzida pela organização Think Eva publicada em maio de 2024, descobrimos que a maioria das mães (54%) exerce a maternidade solo, sendo viúvas, divorciadas ou solteiras. A matéria destaca a má distribuição do trabalho de cuidado, mesmo no caso de mulheres que não exercem a maternidade solo: “Elas ainda são as principais responsáveis pelo cuidado dos filhos, e em função da sobrecarga, não conseguem participar plenamente da economia. Como resultado, 9 em cada 10 mães se sentem esgotadas, sobrecarregadas e adoecidas”.

Fui me aprofundando em estudos ligados à parentalidade, inclusive estudando para ser educadora parental. E, numa pós-graduação que fiz ano retrasado, entrei em contato com autores, estudos e perspectivas bem interessantes. Uma que mexeu muito comigo foi a perspectiva de autocuidado de Renée Trudeau, que o apresenta como autopreservação (e não como autossatisfação): trata-se de nos auto-observarmos, procurando perceber como está nosso corpo físico, mental e emocional (acolhendo o desconforto e confiando no que nosso corpo está nos dizendo) e agindo sobre ele de forma benéfica e saudável, visando à manutenção da vida, da saúde e do bem-estar. Essa perspectiva pareceu muito interessante, principalmente por fugir da visão habitual que temos de autocuidado, que acaba chegando como mais uma demanda a ser administrada entre as demais que compõem a carga mental das mulheres: além de fazer a gestão de todas as tarefas da casa, dos filhos, da relação, elas ainda precisam arrumar tempo e disposição para se cuidar (ainda mais quando o autocuidado é vendido como cuidado com o corpo e a aparência)? Essa noção de autocuidado de Trudeau também pareceu transformadora porque, segundo ela, não podemos fazer isso sozinhos! Primeiro porque precisamos dos relacionamentos em nossa vida funcionando como espelhos de nossas próprias dificuldades e do que mais precisamos cuidar em nós; o autocuidado, então, pode ser entendido como uma jornada de autoconhecimento a partir do encontro com o outro – e dos desconfortos que surgem desse encontro. Segundo porque, nessa perspectiva de autocuidado, torna-se fundamental pedir ajuda e abandonar a crença de que precisamos dar nosso melhor e dar conta de tudo. Autocuidado implica, entre outros passos, saber construir uma rede de apoio. Essa perspectiva de autocuidado está totalmente ligada à concepção de autoestima apresentada por Jesper Juul (também explorada por Dorothy Briggs, Yvonne Laborda, entre outros autores). Segundo Juul, a autoestima seria uma espécie de torre interna, que já nasce com o bebê, de segurança e conexão consigo mesmo: uma sensação indubitável de que estou correto em sentir o que sinto e tenho valor apenas porque existo, minhas necessidades são importantes e vou lutar por elas até o fim. Essa autoestima, na maioria das vezes, acaba sendo minada por diversos fatores em nosso desenvolvimento, nas relações que temos com nossos cuidadores e com o mundo, mas pode ser recuperada com práticas de autocuidado como a proposta por Trudeau.

Essas visões de autoestima e de autocuidado me encantaram, mas ao mesmo tempo me deixaram com um incômodo, uma pulga atrás da orelha: no caso de mulheres – especialmente mulheres mães -, é realmente factível um autocuidado assim? Possível até é, e talvez a vida de mulheres possa de fato melhorar se elas adotarem essas práticas; afinal, realmente, boa parte de nossas amarras estão dentro de nós mesmos. Porém, ao se responsabilizarem pelo autocuidado, as mulheres não estariam fingindo que não existem os problemas sociais que, esses sim, geraram essa dificuldade das mulheres de se cuidar? E outra: por que afinal, mesmo diante da possibilidade, as mulheres sentem tanta dificuldade de praticar o autocuidado? Eu não sabia na época, mas o que me incomodou nessa perspectiva de Trudeau foi essa falta de uma noção política do autocuidado.

Só consegui encontrar eco para essas minhas questões há pouquíssimo tempo atrás, quando entrei em contato com o feminismo radical (a partir do podcast O pessoal é político) e passei a ler autoras que elucidam muito bem a origem de problemas que são tão “invisíveis”, mas que têm um peso enorme sobre a vida de mulheres. Simone de Beauvoir, ao investigar filosoficamente por que a mulher é considerada o “outro” (inclusive para si mesma), o que está incrustado em sua socialização; Silvia Federici, ao investigar historicamente a relação entre o capitalismo e a exploração de mulheres (mostrando o ponto cego de teorias como a de Marx e a de Foucault ao denunciar que todas se ancoram em uma invisibilização do que tornou possíveis as estruturas que mantêm nossa sociedade: o trabalho reprodutivo de mulheres, incluído aí o próprio sexo consentido em uma relação conjugal, que é invisivelmente mais um dos trabalhos da mulher na esfera do lar); mas a que mais conseguiu costurar tudo isso é Valeska Zanello, ao investigar dentro da psicologia como o tornar-se pessoa em nossa sociedade é gendrado – ou seja, tem a ver com categorias de gênero: tornar-se pessoa para alguém do sexo feminino é tornar-se uma mulher (treinada desde criança a ser heterocentrada), assim como para o sexo masculino é tornar-se um homem (treinado desde criança a ser autocentrado). Essas autoras me fizeram desvendar o real problema do autocuidado: ele é impossível em uma sociedade que explora o trabalho de cuidado de mulheres de forma tão naturalizada em nossa socialização que faz as mulheres não verem isso como trabalho, e sim como parte de sua essência, do que é necessário para serem consideradas pessoas (inclusive para si mesmas!).

Segundo Zanello, as mulheres são socializadas por meio do dispositivo amoroso e do dispositivo materno: o amoroso implica que a mulher só se sente pessoa na medida em que ela é escolhida e desejada pelos homens (estando “na prateleira”, segundo a metáfora da autora), enquanto o materno implica que ela só se sente pessoa na medida em que está cuidando de alguém (mesmo que não seja de fato mãe, a mulher é interpelada a cuidar do outro o tempo todo, inclusive do homem e da relação). Esse heterocentramento que está implicado em ambos os dispositivos, sendo ensinado a nós desde crianças por meio de diversas tecnologias de gênero (como músicas, filmes, livros e qualquer produto midiático, desde contos de fadas até a pornografia, bem como diversos outros elementos da cultura, como brinquedos e brincadeiras, xingamentos etc.), faz com que mulheres basicamente só se sintam pessoas quando estão agradando ou cuidando de outro. E, de acordo com a autora, quem avalia as mulheres física e moralmente são os homens, o que torna a aprovação masculina vital para a sobrevivência das mulheres.

Ou seja, ficou nítido para mim que, para que uma mulher conseguisse praticar o autocuidado, ela precisaria desprogramar o heterocentramento dentro de si e nadar contra a maré do funcionamento de toda a sociedade, sofrendo provavelmente punições dessa sociedade ao ser considerada dissidente do que as tecnologias de gênero ensinam sobre o que é ser uma mulher. De onde as mulheres poderiam tirar força para isso? (Fora que isso só seria minimamente possível para mulheres muito privilegiadas, pois a maioria das mulheres, mesmo conseguindo enxergar tudo isso, não conseguiria praticar o autocuidado por falta real de possibilidade material para isso, espinho que não vou abordar aqui por falta de espaço). A autoestima, essa sensação indubitável de que nossas necessidades são importantes e de que temos valor apenas por existirmos, não está disponível para mulheres em uma sociedade gendrada como a nossa (não está disponível para os homens também, afinal eles são socializados por meio do dispositivo da eficácia sexual e laborativa, ou seja, só se sentem pessoas na medida em que performam bem nessas esferas, então eles também precisam cumprir seu papel de gênero e não se sentem socialmente nem intimamente autorizados a serem apenas seres humanos; porém, sua socialização é autocentrada, então o autocuidado, embora numa perspectiva bem superficial de autossatisfação, está pressuposto para um homem).Mas, embora eu tenha me deparado com um iceberg gigante ao investigar o problema do autocuidado (a partir daquelas percepções que minha mãe me mostrou desde que eu era pequena, que estão só na pontinha desse iceberg), nas leituras que fiz também encontrei um pouco de esperança. Para Zanello, o caminho é as mulheres se fortalecerem entre si, não deixarem de falar, de conversar sobre suas percepções, criarem laços entre si e responsabilizar cada vez mais os homens, sempre mediadas pelo letramento de gênero. E, como dizem Letícia Graton e Isabela Graton, que me apresentaram várias dessas ideias no podcast O pessoal é político, se o patriarcado não existe desde sempre, significa que ele pode acabar. Façamos nosso trabalho de formiguinha de nos unir entre mulheres para isso!

Referências

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos e O segundo sexo: a experiência vivida. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019.

BRASIL.  Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome; MDS – Secretaria Nacional da Política de Cuidados e Família. Marco Conceitual da Política Nacional de Cuidados do Brasil. Disponível em: https://www.gov.br/participamaisbrasil/marco-conceitual-da-politica-nacional-de-cuidados-do-brasil. Acesso em: 19 dez. 2024.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. 2. ed. São Paulo: Elefante, 2023.

GRATON, Letícia; GRATON, Isabela. O pessoal é político. Disponível em: https://www.opessoalepolitico.com.br/. Acesso em: 29 mar. 2025.

JUUL, Jesper. Sua criança competente. Osasco: Editora Novo Século, 2002.

PORTAL GELEDÉS. Quadrinho explica por que mulheres se sentem tão cansadas. 2017. Disponível em: https://www.geledes.org.br/quadrinho-explica-por-que-as-mulheres-se-sentem-tao-cansadas/. Acesso em: 29 mar. 2025.

THINK EVA. Quem são as mães brasileiras? Disponível em: https://thinkeva.com.br/quem-sao-as-maes-brasileiras/. Acesso em: 18 dez. 2024.
ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Curitiba: Appris, 2018.

Texto produzido na pós-graduação em Estudos Familiares sob orientação de Ana Carolina Gomes Bueno

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